09/03/2014 22h34 - Atualizado em 10/03/2014 12h00
São escolas sem água potável, sem banheiro e até
sem sala de aula. O que não falta é a força de vontade de alunos, professores e pais.
Um retrato do
abandono do ensino público no Brasil. São escolas sem água potável, sem
banheiro e até sem sala de aula. Durante dois meses, os repórteres Eduardo
Faustini e Luiz Cláudio Azevedo percorreram escolas públicas dos estados que
tiveram as médias mais baixas no Programa de Avaliação Internacional de
Estudantes (Pisa). “O percurso deles é em torno de 20, 30 quilômetros. Muitos
acordam duas, três horas da manhã, para pegar um caminhão, para que esse
caminhão leve até a rodovia, para da rodovia vir de um transporte fornecido
pela prefeitura do município: o ônibus escolar”, conta um morador de Joaquim
Gomes, em Alagoas.
“A rua é assim
desse jeito. Os meninos, a gente atravessa eles no braço, porque não quer ver
eles molhado. Caderno, eles não dão”, conta uma moradora de Jaboatão dos
Guararapes, em Pernambuco. “Essa água não
é ideal para ser tomada e, principalmente dar ela para as crianças. Isso aí tem
um germe total. Eu trabalho aqui, mas dela eu também não bebo”, revela um
homem. “Tem aluno que até cai da carteira, principalmente os menores, da
educação infantil”, diz uma moradora de Codó, no Maranhão.
“Quando temos a
necessidade de irmos para o banheiro, nós vamos para o mato. Os alunos e a
professora”, afirma uma mulher. O que a reportagem mostra são escolas em que
falta tudo, escolas que nem de longe lembram uma escola. O que não falta é a
força de vontade de alunos, professores e pais que sofrem com as péssimas
condições de ensino. Sofrem e ficam indignados.
“Ei, quatro
anos sem receber farda, aqui, ó”, conta uma mãe. “Sem receber farda, sem
ninguém dar atenção para gente”, afirma uma outra mãe. “As crianças da gente
são desprezada aqui dentro”, reclama. O Fantástico mostra a situação da entrada
de uma escola municipal, em Jaboatão dos Guararapes, em Pernambuco.
“Quando chove,
a água invade, e chegam molhados, tudo sujo. Aí a situação. Aí não tem. Um
bebedor bom não tem. Papel higiênico não tem”, afirma a mãe de aluno Maria
Betânia dos Santos. Revoltada, ela diz que as professoras pedem aos pais até
material de limpeza: “Elas pedem à gente uma vassoura, pedem detergente. É o
que for para botar aqui. Para ajudar aqui. E tem vez que as pobrezinhas passam
quase um mês sem receber. Aí como é isso?”.
Isso é a
realidade de escolas públicas em Alagoas, em Pernambuco e no Maranhão. Na mais
recente pesquisa brasileira do Programa Internacional de Avaliação de
Estudantes (Pisa), esses estados estão entre os que tiveram as notas médias
mais baixas. Os repórteres do Fantástico passaram dois meses registrando as
condições de escolas nesses estados.
Fantástico: Que horas você
sai de casa?
Williana Soares (aluna): Quatro horas.
Everton Guedes Cavalcante (aluno): A hora que eu saio de casa, o máximo é 4h10, mas me
acordo 3h50.
Só tem um jeito
para o Everton e para a Williana irem à escola: de caminhão. “Tem uma base de
uns 55 alunos que nós vai (sic) nesse caminhão. Só que tem a dificuldade da
estrada”, explica o motorista José Fernandes de Melo. É uma estrada de terra.
Depois dessa viagem, em Joaquim Gomes, em Alagoas, é que eles pegam o ônibus
escolar da prefeitura. Mas e quando chove? “Com dia de sol, nós consegue (sic).
Quando choveu, não consegue chegar aqui”, conta o motorista. O jeito então é
ir... “Andando. Fora a ladeira que tem para subir”, conta Williana. Ou então...
“É ficar em casa mesmo, sem poder ir para a escola”, admite Everton.
Já em Lagoa
Grande, em Pernambuco, quem não tem caminhão vai de charrete. Seu Francisco diz
que a filha, a Rosileide, se queixa quando a escola não pode funcionar. Em
Codó, no Maranhão, o André e o primo dele, o Eduardo, são vaqueiros de manhã.
De tarde, caminham 35 minutos até a escola. Por lá, falta
quase tudo. Não falta carinho. “Vocês são guardado no lado esquerdo do meu
coração. Então, sejam bem-vindos mais este ano que nós temos aqui para
trabalhar, para melhorar, para ver os nossos acertos”, anuncia a professora.
Em Jaboatão dos
Guararapes, Pernambuco, se chegar a uma escola assim não é fácil, entrar também
pode ser bem difícil, como foi visto no início da reportagem. Na frente de
outro colégio da mesma cidade, a situação é pior ainda: o esgoto está aberto. E
ainda uma terceira escola enfrenta o mesmo problema, no mesmo município. “Está
há seis anos assim. Agora, é o que a gente diz para as mães: nós como
funcionários vamos entrar. Nós somos funcionários, precisamos preservar a
escola aberta para o aluno”, diz a secretária escolar Maria Vieira de Araújo.
Fantástico: Como que a
senhora chegou hoje para dar aula? Qual foi a situação que a senhora encontrou
na sala de aula?
Auriele Galvão (professora): A escola toda estava alagada. Não é goteira, é chuva mesmo. Eu afasto
todas as cadeiras, boto todo mundo pro canto, e coloca baldes aqui. A água desce
todinha pela parede. Inclusive eu já perdi trabalhos que a gente realiza
trabalhos com os alunos, coloca nas paredes em exposição, mas aí desce tudo,
molha tudo. Você pode pensar que é uma cidade muito longe dos grandes centros,
mas não é: Jaboatão dos Guararapes fica a cerca de seis quilômetros do metro
quadrado mais caro de Recife, na praia de Boa Viagem. Finalmente, a
aula começa, inclusive na escola indígena Pajé Miguel Selestino da Silva, em
Palmeira dos Índios, em Alagoas. O que falta é a própria sala de aula.
Fantástico: Há
quantos anos o senhor dá aula nessa situação aqui?
Jecinaldo Xucuru Cariri (professor): Há mais de dois anos que eu venho ministrando aula debaixo da mangueira.
É bastante complicado, até porque de repente vem uma chuva, então tem que todo
mundo correr e abandonar a aula. Em uma galpão, funciona outra sala. É uma
situação de improviso, porque a sede original da escola não tem mais condições
de uso e está interditada. No galpão, os alunos ficam espremidos. Além do
desconforto, tem o perigo. A escola municipal em Codó, no Maranhão, se chama
Divina Providência e espera providências há muito tempo.
Fantástico: Há quanto tempo
essa escola está assim? Do jeito que está assim hoje.
Deusdet Oliveira Matos (comerciante): Está com mais de 15 anos.
O Deusdet é um
comerciante que construiu a escola há 50 anos e, do jeito que pode, continua
tomando conta dela.
Deusdet Oliveira Matos: Quando está gotejando, eu vou, tiro a goteira. Agora, esse ano eu ia
fazer essa parede de tijolo, mas ainda não fiz.
Fantástico: O que leva o
senhor a cuidar dessa escola?
Deusdet Oliveira Matos: O espírito de humanidade, para poder auxiliar os filhos dos moradores a
não se criarem analfabeto. “A situação, como vocês estão vendo, desde o ano
passado que a gente está desse jeito. A falta de cadeira, sentam e não tem o
braço da cadeira. Eles estão com dificuldade para escrever. E eu estou
utilizando a minha mesa, para que eles fiquem mais à vontade. O que eu posso
fazer eu estou fazendo”, diz Juciara de Souza, professora em Petrolina,
Pernambuco. Em uma das cadeiras é possível ver parafuso para fora. “Eu gostaria
que tivesse cadeiras boas e que não fossem quebradas”, afirma uma aluna. “Já
teve caso de criança perder aula, porque não tinha cadeira”, conta a mãe de aluno
Edineide Helena da Costa. “O piso da escola não é adequado para o tipo de
carteira, porque as carteiras, como é você pode ver, é um cano. Então, elas
afundam no chão. E aí tem aluno que até cai. Aí chora, devido ao chão batido,
que aqui não sabe se aqui é uma subida, ou ali é uma descida. É um desnível
total. Porque aqui era uma casa de moradia. Era uma pessoa que morava aqui. Aí
montou essa escola aqui para eles”, conta Rosa Maria Pereira Cunha, professora
em Codó, no Maranhão.
As escolas
visitadas pelo repórter Eduardo Faustini ficam em regiões bem quentes. Nas
salas, todo mundo se queixa do calor. “É quente. No calor não tem quem
suporte”, reclama a aluna Mayara Nunes de Alencar, em Petrolina, Pernambuco. “Tem
um ventilador, mas na outra sala. Um ventilador não é suficiente para os aluno.
É muito aluno”, diz a zeladora Josiane Barbosa da Silva, de Lagoa Grande,
Pernambuco. Em outras escolas, um, dois ou um monte de ventiladores, nada
resolveria, porque elas não têm energia elétrica.
Rosa Maria Pereira Cunha (professora em Codó, no Maranhão): Quando chove, fica escuro.
Fantástico: Não tem luz.
Rosa
Maria Pereira Cunha: Tem não. Não
tem luz. Como beber água nessas condições? E como fazer a merenda? “Para beber
água, a gente pega água com a dona da terra. Pega uma garrafa de água e trago
para cá, porque também está faltando filtro”, conta a professora Eliete de
Araújo Lobes. “Eu trabalho aqui, mas dela eu também não bebo, porque a gente vê
a situação da água. Isso aí tem um germe total. Até lá em cima tem um pisador
de cavalo e um pisador de boi. Tem uns bois que ficam aí atrás que bebem dessa
água aí em cima da barragem”, José Dionísio Justino, professor em Joaquim
Gomes, em Alagoas.
Celso Selestino (agente de saneamento em Palmeira dos Índios, em
Alagoas): Não tem
tratamento. Do jeito que ela passa aqui, ela abastece a cidade e não tem
tratamento nenhum.
Fantástico: Agora tem algum sistema de filtro para proteger
essa água?
Celso Selestino: Não. O filtro que tem aqui só isso aqui, não tem filtro nenhum. O
pessoal é que coa a água ali e dá para as criança beber. “A fossa é dentro da
cozinha, e o suspiro é dentro da cozinha. Aonde a merenda já chega pronta e a
gente tem que servir a merenda neste setor”, revela um funcionário de Jaboatão
dos Guararapes, Pernambuco. “Geralmente a merenda só aparece de maio a junho.
Geralmente é nesse período que a merenda aparece”, diz uma funcionária de uma
escola na cidade de Codó, no Maranhão. “Custa a
chegar. E quando vem, a gente se junta lá com a vizinha aqui, que me ajuda
demais, e aí a gente faz a merenda para essas criança. E, quando não, eles
comem fruta da estação. Desse jeito”, conta a professora Maria do Amparo dos
Anjos.
Professora de Lagoa Grande, em Pernambuco: Às vezes não tem aula porque não tem a merenda.
Fantástico: Difícil, não é?
Professora: É complicado.
Fantástico: Como é que você
se sente, assim, cuidando dessas crianças nessa situação?
Professora: Assim, eu me sinto... pequena, né? Que seus alunos não tá crescendo. Você sente
como se tivesse diminuindo, não tá aumentando. E aí, se o
aluno tem o que comer e faz sua refeição, é hora de escovar os dentes. Mas em
que banheiro? “A água que a
gente tem para botar nas descargas. Ontem, quem fez a limpeza fomos nós, os
professores. Ó, aqui não tem a torneira”, denuncia a professora Marilucia Gomes
de Sá, professora em Petrolina, Pernambuco. “O ano passado eles estudaram sem
banheiro, não tinha banheiro”, conta Francisco da Silva, pai de um aluno em
Lagoa Grande, Pernambuco.
Josiane Barbosa (zeladora em Lagoa Grande, Pernambuco): Ó, tem esse banheiro aqui. Não tem luz, todo
esculhambado. Tão fazendo um ali fora, mas começaram e não terminaram ainda.
Fantástico: A descarga funciona?
Josiane Barbosa: Não.
Fantástico: Como é que faz
o aluno quando precisa ir ao banheiro?
Funcionária: Os meninos vão para detrás da escola, e as meninas,
do outro lado, assim como a professora também. Que nós não temos banheiro.
Fantástico: A senhora usa o
mato quando...
Funcionária: Também.
Fim das aulas,
hora de voltar para casa. Lama, viagem longa e perigosa, em mais um dia do ano
letivo. Essas escolas
passam por inúmeras dificuldades. Para muitos professores, a situação é mais
difícil ainda, porque eles têm que dar aulas para várias turmas ao mesmo tempo.
É o chamado ensino multisseriado, bastante comum no Brasil.
Fantástico: Enquanto a
senhora está dando aula para uma turma, a outra aguarda, é assim que é feito?
Professora: É. Sempre eu começo pela educação infantil, já tá
aprendendo a coordenação motora. Eu passo primeiro. Aí vou para o outro que já
está lá no quarto, quinto ano.
Algumas das
escolas mostradas na reportagem oferecem aos alunos menos do que o mínimo do
mínimo. Uma escola com infraestrutura elementar tem que ter água, banheiro,
esgoto, energia elétrica e cozinha. Quase metade das escolas brasileiras é
assim. São 87 mil ou 44,5% do total de escolas no país, segundo estudo feito
por pesquisadores da Universidade de Brasília e da Federal de Santa Catarina. “Escolas com
estrutura precária em geral são escolas municipais e muitas dessas escolas são
rurais. Se nós pegarmos escolas que atendem alunos com um nível socioeconômico
equivalente, as que têm melhor estrutura tendem a oferecer melhor resultado”,
diz José Joaquim Soares Neto, pesquisador da UnB. A escola com a infraestrutura
adequada tem sala dos professores, biblioteca, laboratório de informática,
quadra esportiva e parque infantil. Conta também com acesso à internet e
máquina de cópias.
E a escola com
infraestrutura avançada tem tudo isso e ainda laboratório de ciências e
instalações para estudantes com necessidades especiais. Das 195 mil escolas
brasileiras, pouco mais de mil são avançadas. Isso representa 0.6% do total.
“Em geral, essas escolas estão em regiões como Sul e Sudeste”, completa o
pesquisador. Diante disso tudo, o que é que leva todos esses brasileiros,
alunos, professores e também os pais, a seguir em frente? O professor Elias Ferreira
da Silva passou por algumas dessas situações que você acabou de ver, chegou à
universidade e hoje dá aula na Escola São José, em Alagoas, aquela dos alunos
que precisam do caminhão para ir à aula.
“É justamente
essa vontade que eles têm de um futuro melhor que fazem ele ter essa força de
sair 30 quilômetros, 20 quilômetros, 15 quilômetros, para chegar até a escola”,
destaca Elias Ferreira da Silva. “Ano passado,
quando cheguei aqui, estava tudo caído, aí eu me sentei e, sinceramente, eu
chorei”, revela uma professora. “Eu queria que ela fosse grande, que tivesse
vários professores, apesar que eu gosto de todos os meus professores, eles me
ensinam muito bem”, comenta uma aluna. “Eu sempre digo
isso, que eu acho que a gente que trabalha na Zona Rural, nós somos realmente
heroínas”, afirma uma mulher. “Apesar desses lugares mais longínquos possível,
vocês são o futuro dessa nação, construindo a sua própria história, ajudando a
erguer mais esse país tão grande”, afirma uma professora. A Prefeitura de Codó,
no Maranhão, diz em nota que vem melhorando a infraestrutura das escolas
rurais. Afirma que, nos últimos cinco anos, foram construídas e equipadas 150
novas salas de aula. E que está prevista a construção de mais 28 escolas nos
próximos 2 anos.
Veja o que os outros órgãos públicos têm a dizer:
A prefeitura de
Jaboatão dos Guararapes informou na sexta-feira (7) que o trabalho de
recuperação está em andamento. “Já recuperamos 51 escolas e temos um cronograma
de execução até o final do ano. As três escolas visitadas, desde a produção das
imagens até o presente o momento, já resolvemos mais de 90% do que vocês
filmaram”, afirma secretário de Educação de Guararapes, Francisco Amorim. A Secretaria de
Educação de Joaquim Gomes, em Alagoas, informa que tem projetos junto ao
Ministério da Educação para obter recursos federais para recuperar escolas
rurais e também urbanas. Novas cadeiras já estão sendo compradas e reparos
estão sendo feitos nas escolas.
O secretário de
Educação de Lagoa Grande, em Pernambuco, diz que o município está trabalhando
na recuperação das escolas em regime de urgência. “Encontramos o município
totalmente sucateado. Fizemos um levantamento emergencial onde a gente poderia
intervir de imediato”, afirma o secretário de Educação de Lagoa Grande, Daniel
Torre. A Secretaria de Educação de Alagoas afirma que a ordem de serviço para
recuperação da Escola Estadual Pajé Miguel Selestino já foi assinada. Serão
instalados um laboratório de informática e uma biblioteca. As cadeiras da
escola Joaquim Francisco da Costa, em Petrolina, Pernambuco, foram substituídas
cinco dias depois de o Fantástico visitar a escola.
Fonte: http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2014/03/fantastico-mostra-situacao-precaria-de-escolas-publicas-em-alagoas-em-pernambuco-e-no-maranhao.html