11/05/2013
Coluna de
VEJA
PARADA
NO TEMPO
Murici,
a cidade onde a família do senador Renan Calheiros se reveza no poder, é
privilegiada em verbas federais, mas boa parte da população ainda vive na
miséria
Município de 27 000 habitantes situado a 50 quilômetros
de Maceió, Murici frequenta com certa assiduidade o noticiário nacional por
três motivos – todos lamentáveis: inundações devastadoras, escândalos de desvio
de dinheiro público e o fato de sempre ter na prefeitura, em esquema de
revezamento, políticos de sobrenome Calheiros.
A família domina há mais de trinta anos (21 deles
ininterruptos) a administração municipal, muito embora seu filho mais famoso, o
presidente do Senado, Renan Calheiros, 57 anos, só apareça por lá em campanha
ou em dia de inauguração. Chafurdado em alguns dos piores indicadores
socioeconômicos do Brasil – até mesmo para os padrões alagoanos -, Murici é o
resultado da velha política assistencialista, cujas raízes remontam ao coronelismo.
Um terço dos moradores não sabe ler nem escrever, 65%
dependem do Bolsa Família para sobreviver e o Índice de Desenvolvimento Humano
rasteja em 0,58 (numa escala que vai de 0 a 1). Uma das maiores escolas
públicas muricienses, com 560 alunos, funciona em salas de chão de terra
separadas por tapumes. As crianças saem uma hora mais cedo porque a escola não
oferece merenda. O problema não parece ser, nesse caso, de miséria. Um processo
que aponta irregularidades nas verbas de merenda na cidade já chegou ao Supremo
Tribunal Federal.
O assunto que alvoroça os
moradores é o destino de
mais de 2000 casas construídas com verba federal de 95 milhões de reais. Na
teoria, seriam destinadas às famílias desalojadas na enchente de 2010, que
deixou quase 10000 desabrigados e nove mortos. Na prática, não tem sido assim.
As casas estão prontas: são dois conjuntos habitacionais
novinhos, o Olavo Calheiros – patriarca do clã e primeiro a fincar pé no poder,
ao assumir a prefeitura, em 1980 – e o Pedro Raposo Tenório, de família aliada
política dos Calheiros.
A maioria desses imóveis foi distribuída segundo critérios
duvidosos, que quase sempre privilegiam os mais próximos do poder. O Ministério
Público Federal determinou à prefeitura que refaça a lista de cadastrados
levando em conta critérios menos clientelistas.
A desabrigada Maria Benedita
Francisca da Silva, 69 anos, perdeu tudo na enchente e continua sem teto.
“Passei um ano e meio morando numa barraca de lona da prefeitura. Até hoje não
recebi a casa que me prometeram”, diz ela, hoje vivendo com onze familiares em
um puxadinho erguido no quintal da casa da filha.
Claudivan Maurício de Souza, o
Lobinho – integrante do rol dos que fazem parte do séquito oficial -, não tem
motivo de queixa. Funcionário da prefeitura e notório adulador do prefeito Remi
Calheiros, irmão de Renan, Lobinho já mora no conjunto Olavo Calheiros.
A escritura está em nome de sua
mulher, Poliana da Silva Torres, que ainda era solteira e morava em Minas
Gerais quando o Rio Mundaú transbordou e inundou Murici.
Interpelada pela reportagem de
VEJA na porta da casa nova, Poliana ligou para Lobinho: “O que eu digo se
perguntarem se a sua casa foi mesmo atingida pela enchente?”.
A Prefeitura é o maior cabide
de empregos da cidade
A orientação dele foi responder
que sim, foi. Mais tarde, ouvido por VEJA, o funcionário relativizaria o
estrago: “Não perdi quase nada”, admitiu. No local em que morava, a água chegou
no máximo “aos pés da cama e ao fundo de um armário velho”. Por que então
entrou na lista de beneficiados? “Bom, entrou água, né?”
Com seus 1 200 funcionários, a prefeitura é o maior cabide de emprego de Murici. Quem não
trabalha lá ou no pequeno comércio local depende do poder público – ou seja, da
boa vontade dos Calheiros – para pôr comida na mesa.
Moradora da favela
Portelinha, Veroneide da Silva, 25 anos, vive com os três filhos em um dos
barracos que a prefeitura fornece. O piso é de terra e o banheiro é o mesmo rio
onde ela e outras 400 famílias lavam roupa e recolhem água para cozinhar. “Não
acredito mais que possa melhorar de vida”, resigna-se Veroneide.
Em seu quarto
mandato, o prefeito Remi argumenta que “Murici é uma cidade com muitos
problemas, mas temos resolvido muitos também”. Sobre irregularidades na entrega
das casas pós-enchente, rebate em tom indignado: “Você está me contando uma
novidade. Não coloquei um só nome na lista”.
A pouca disposição
do prefeito para discutir sua administração contrasta com a paixão pelo Murici
Futebol Clube, presenteado pela Câmara Municipal com uma mesada de 40 mil reais
(repasses que Remi jura nunca terem chegado ao seu time do coração, quinto
colocado no último campeonato alagoano).
Os Calheiros, eleitos para derrubar uma oligarquia
dominante, criaram a sua
Renan e seu irmão
deputado, Olavo, têm negócios e fazendas na região. A pujança financeira e
política da família é herança do patriarca, major Olavo (a patente é
simbólica), comerciante de cavalos que levava vida humilde até encontrar o
caminho da prefeitura e, a partir dele, a trilha para o poder e a riqueza. Curiosamente, o
major foi eleito em nome da renovação, como o homem do povo que derrotou a
oligarquia dominante – para em seguida criar seu próprio clã e tudo voltar ao
que era antes.
QUEM É QUEM -- Maria Benedita, desabrigada há mais de dois anos, mora de favor enquanto espera, em vão, pela casa nova (Foto: Manoel Marques)
Remi tem o sobrinho
Olavo Neto como seu vice. A imprescindível Secretaria de Assistência Social,
que detém o cadastro do Bolsa Família, está sob o comando de Soraya, a
primeira-dama. As portas do casarão que Remi herdou do pai ficam sempre abertas
(só os quartos são trancados), e pessoas humildes circulam por lá pedindo todo
tipo de favor.
Acostumada ao
domínio da família, acomodada aos seus métodos, temerosa de perder benefícios,
a população faz o que se espera dela: vota nos Calheiros. Até porque, em época
de eleição, ganhar uma nota de 50 reais ou uma cesta básica faz parte da
rotina. O clã não arreda pé de Murici nem quando a lei não deixa Remi se
reeleger: nessas ocasiões, o sobrinho Renan Filho, 33 anos, toma seu lugar.
“Quando uma família
comanda a cidade, é muito comum que a máquina pública passe a ser usada para
atender a interesses particulares”, diz o cientista político Ranulfo Paranhos.
Sobrecarregada de
índices negativos, numa coisa Murici faz bonito: na obtenção de verbas
federais. Desde 1996, mais de 39 milhões de reais foram aprovados por diversos
ministérios para a cidade, em 114 convênios – para efeito de comparação, a
vizinha União dos Palmares, que tem o dobro de habitantes, firmou 77.
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